Mais uma vez tem-se uma significativa contribuição da literatura para a história tradicional, que nem sempre consegue revelar com riqueza de detalhes aspectos dessa história. O filme Desmundo (2003), de Alain Fresnot, homônimo da obra de Ana Miranda, retrata a realidade do Brasil de 1570. Nessa época, desbravadores portugueses tinham a missão de explorar a recente descoberta, dominar o povo gentio e estabelecer produção. O filme explora várias questões acerca do contexto da época como(linguagem, religiosidade, sexualidade, obediência, fidelidade), que serão focalizadas, principalmente, na narrativa da personagem Oribela, uma das órfãs que são trazidas de Portugal numa caravela, enviadas pela rainha de Portugal, com o objetivo de se casarem com os cristãos portugueses que ali se encontravam. Através dessa personagem nos deparamos com o universo da existência feminina, da religiosidade, do amor, da sexualidade. Todos esses sentimentos estão arraigados na personalidade dela e nos permite conhecer as estruturas mentais construídas culturalmente à época, uma vez que a sua voz ressoa outras tantas vozes, que por sua vez reproduzem os discursos normativos e impositivos da época, seja da igreja, seja da sociedade patriarcal. A mulher deveria ser obediente a seus esposos sem apresentar qualquer tipo de comportamento desaprovável, do contrário era justificado o uso de “corretivos” ,que envolviam certos rituais com o corpo como: nunca mais deixar o cabelo solto, mas sempre atado, seja com turbante, seja trançado, não morder o beiço, afora outras atitudes que submetiam a mulher a uma verdadeira humilhação e abdicação de suas vontades e opiniões. Não mais a mulher tem domínio sobre o seu corpo e tudo que ela deve fazer tem que estar em acordo com os desejos do marido. Essas atitudes encontraram assente no discurso religioso, que determinava como deveria ser o papel feminino na sociedade, discurso esse que se tece com outros discursos similares na história. Domesticar a mulher, privando-a de qualquer liberdade era uma maneira de o homem não sofrer ameaças. A própria Oribela internaliza e reproduz as vozes do discurso religioso, de Francisco, da velha e de tantos outros a revelarem como ela deveria se comportar. Nota-se, entretanto, um profundo embate entre o que ela ouvia e aquilo que se recusava a aceitar. A passagem em que a Velha prepara as jovens para o casamento próximo, ditando as cautelas que devem tomar e como serão suas vidas a partir de então, revelando o aspecto atemporal daquelas circunstâncias faz com que Oribela revolte-se diante de tantas interdições a que seria submetida. Prostar-se em oração com os joelhos sobre milhos, ferindo-os até sangrar, configura-se como uma penitência poderia livrá-la do purgatório eterno. Outro traço bastante marcante no filme diz respeito à questão da linguagem e as representações figurativas que nele são estabelecidas. Em Desmundo a linguagem tem papel representativo nos discursos que aparecem na história. Ela revela, por parte de quem as usa, as posturas impositivas, audaciosas, resignadas, reveladoras que acontece à época. Para isso recorre-se ao léxico, com o uso de palavras dicionarizadas ou não, como no caso de Oribela, para revelar a situação “sem norte” em que a personagem se encontra. O uso do prefixo de negação “des” na formação de palavras como “Desmundo”; “desrumo”, que não fazem parte da língua oficial , e outras, como em “despejado lugar”, terras desabafadas, “desventura” demonstram o caráter “purgatório” daquele lugar. Esse fenômeno lingüístico leva a se estabelecer comparação ao que Guimarães Rosa ilustra em suas obras, ao utilizar as palavras nem sempre dicionarizadas, mas que criam significância na realidade, de acordo com o uso que se quer fazer delas. Outro aspecto interessante em relação à linguagem diz respeito ao uso de metáforas e de antíteses no romance. O simbolismo que tem algumas passagens como “O dobrar ou não os joelhos (membro do corpo) pode revelar a autoridade sobre o corpo, mas não sobre a alma e o coração; estes não se dobram e não se permitem ser domesticados ou desvendados. Esta metáfora nos posiciona em dois aspectos relativos à mulher que deveriam ser domesticados: a alma e o corpo. As antíteses são outro recurso de que faz uso Ana Miranda semelhantemente à Guimarães Rosa, o contraditório surge em mundo X Desmundo; boas mulheres X putas e regateiras (o próprio ‘desmundo’ contraditória à idéia de “mundo” ) e “torna inevitável a comparação com os protótipos de mulher da época estabelecidos pela sociedade colonial: o da santa mãezinha e o de mulher sem qualidades e que tanto ameaçou o projeto de colonização.” Convém falar sobre a mescla de tantas variedades lingüísticas em terras brasileiras no período e que revela a existência de várias culturas no país e estabelece, também, conflitos sociais como a tentativa de aproximação entre esses mundos. Apesar de aparecerem alguns termos indígenas no filme, eles se restringem à tentativa de comunicação entre Temericô e Oribela e nos revela o choque entre as culturas, que são desiguais, onde o dominador prevalece e expurga o dominado, como se pode constatar hoje, com o desaparecimento de inúmeras línguas indígenas.
Resenha de autoria da Cursista_ Francisca da Chagas Gabriel da Silva da DRE- RE